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Por: Marcelo Henrique
28/10/2021
14:10

Em pleno Terceiro Milênio, quando os avanços tecnológicos nos surpreendem a cada instante e, por outro lado, as doenças (velhas e novas) nos aturdem e nos afligem, quando, extemporaneamente, os ranços e os preconceitos ancestrais ainda nos levam, inclusive por vergonha, a nocaute, a centenária Academia Brasileira de Letras (ABL), criada nos moldes da Academia Francesa, desafia o tempo, mantendo-se, bem ou mal, como uma espécie de pote no final do arco-íris onde, tanto quanto se deduz, encontraremos o verdadeiro ouro das reservas intelectuais do Brasil. Assim é, igualmente, nas esferas estaduais e municipais – cada qual com o seu pugilo de 40 “imortais”.

Certamente, o papel das Academias de Letras precisa ser repensado nos dias atuais, pois, em tempos de internet e de redes sociais, nunca se escreveu tanto no país (nem nos tempos de Machado de Assis!), porém, por outro lado, nunca se escreveu tão mal – um idioma quase alienígena domina as redes sociais, escorado em duas bengalas: as gírias e os emojis.

No caso da ABL, as injustiças históricas são, creio eu, fruto do corporativismo intelectual, uma espécie de compadrio (o votar no amigo porque é amigo, de preferência influente politicamente, e não necessariamente um poeta ou escritor talentoso), ou seja, esse espírito de patota que, ao longo de mais de 120 anos, produziu equívocos irreparáveis. Como exemplos desses equívocos, que são muitos, cito apenas dois: a recusa, por três vezes, do consagrado poeta Mario Quintana e, mais recentemente, em outubro de 2014, do altíssimo poeta Thiago de Mello, de renome mundial, preterido em favor do jornalista Zuenir Ventura, de “O Globo”, na sucessão de Ariano Suassuna. O grande erro talvez esteja no fato de a ABL não convidar; o sujeito é que tem que se candidatar, esmolar votos pessoalmente, arranjar “pistolões”. E o poeta Thiago de Mello, que me honrou com uma das apresentações ao meu livro “Epifania”, em 2015, jamais se curvaria a essa convenção de cabalar votos.

Sobre esse assunto, aliás, recomendo o livro “Farda, Fardão, Camisola de Dormir”, de Jorge Amado, romance escrito em 1979.

Salvo melhor juízo, a ABL continuaria, como no passado, subserviente: se ela se curvou, em 1941, às botas do ditador Getúlio Vargas, acolhendo-o em sua confraria, também se rendeu ao “escritor” Paulo Coelho, em 2002, conferindo a “imortalidade” acadêmica a um escritor de... livros de autoajuda.

Aliás, para fazer jus à vaidade, que só aumenta, e ao talento, que só diminui, agora a moda é criar “Academias” que nem sede física têm, existindo, apenas, na internet e nas redes sociais, fazendo perpetuar a troca solene de louvações e massagens no ego através de “lives” – com ou sem fardão.

Todo esse preâmbulo é para lamentar o que parece se caracterizar como uma espécie de “desvio de função” nas Letras nacionais. No último dia 11 de outubro, a Academia de Letras da Bahia elegeu como “imortal” a cantora Maria Bethânia. Em 4 de novembro, tanto quanto se deduz, a ABL elegerá a atriz Fernanda Montenegro, candidata única à sucessão do diplomata Affonso Arinos de Mello Franco (dizem que ninguém quis concorrer com Fernanda, mas tenho para mim que foi uma manobra da ABL para assegurar a eleição da grande atriz brasileira), afinal, nem Zélia Gattai, quando concorreu, em agosto de 2001, à sucessão do próprio marido, Jorge Amado, foi blindada dessa forma – muito pelo contrário: enfrentou, com modéstia espartana e grande nobreza de alma, um número recorde de candidatos, inclusive este pobre poeta e escritor do interior paulista. Tanto Bethânia quanto Fernanda são “monstros” sagrados nas Artes, mas cada qual na sua área – uma na música e outra como atriz. Nenhuma delas, até onde sei, na Literatura: Bethânia é conhecida por interpretar magistralmente poemas e textos de Fernando Pessoa, Clarice Lispector e Guimarães Rosa; Fernanda Montenegro, por sua vez, “escreveu” a autobiografia “Prólogo, Ato, Epílogo”, quando completou 90 anos, e só. Respeito profundamente Maria Bethânia e dona Fernanda Montenegro, mas tenho para mim que essa “imortalidade” acadêmica, de que ambas prescindem, poderá, inclusive, manchar a biografia dessas duas magníficas artistas brasileiras.

Sei, contudo, que este artigo não passa de um débil e frágil lamento; sou a voz que clama no deserto das consciências, mas não tenho, nem de longe, o condão de comovê-las, ainda que eu possuísse o alcance midiático necessário. Sei, também, que as injustiças nas Academias se explicam, pois, a exemplo dos sanatórios, nem todos os que “estão” “são” e nem todos os que “são” “estão”. Sei, mas não me conformo.

A Academia Francesa, fundada em 1635 pelo cardeal Richelieu, sob o reinado de Luiz XIII, soube corrigir, no século 20, uma injustiça que durou 300 anos, mandando erigir, defronte à sua sede, uma estátua do dramaturgo Molière (o genial criador de Tartufo, Harpagon e o mulherengo Don Juan), que ela recusou em seus quadros no século 17, condenando-o e à sua obra, acrescentando, em sua homenagem tardia, porém justa, na base dessa estátua, uma inscrição bem ao gosto e à elegância parisienses: “Nada falta à sua glória; ele é que falta à nossa”. Tomara que também nós, brasileiros, consigamos, um dia, corrigir, à altura, tantas e tão sentidas injustiças nas Letras nacionais.

Nota da Redação: Marcelo Henrique, poeta, escritor e jornalista


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